Dias atrás numa dessas incursões quarentênicas pelo youtube na madrugada, me deparei com um daqueles muitos vídeos de colecionadores de discos enumerando seus álbuns favoritos, no caso eram os quinze preferidos de Frank Zappa. Ali valiam os discos solo e os dos Mothers of Invention, banda onde Zappa iniciou sua multifacetada carreira em 1966 e que no fundo pouco difere da sua carreira individual. Essas listas, na verdade, são aqueles experimentos que não levam a conclusão alguma, a não ser exercitar uma deliciosa retórica sobre os gostos pessoais. Afinal, cada um tem sua própria lista e mesmo essa muda a cada dia também. 

 Agora, no caso do Zappa, existe um álbum que nunca é negligenciado por ninguém em qualquer lista que se preze, a menos pelo desconhecimento indesculpável de algum fã café de primeira hora: Trata-se de Hot Rats, gravado e lançado em 1969 e segundo álbum solo do músico (de 1966 a 1975 Zappa alternaria discos solo com os dos Mothers, quando a partir de então se concentrou na carreira própria).
 
Quem é da minha geração, ou das próximas, possivelmente conheceu, como eu, a obra de Frank Zappa através desse álbum, pois naquela virada dos anos setenta para os oitenta quando eu estava descobrindo o poder dos sons (De Caetano a Beatles, de Arrigo a John Coltrane), quem fosse procurar qualquer Zappa nas lojas de discos (sim, só dessa forma se podia ouvir uma música que não tocasse no rádio, o que no caso do Zappa era uma patente) só encontraria em catálogo esse título, relançado por iniciativa de alguma boa alma da indústria fonográfica uma década depois do lançamento (lembre-se que nesse período do regime militar o acervo discográfico internacional do país, assim como outras áreas da cultura, viviam numa árida penúria). E assim foi. Logo depois lembro que sairia em versão nacional também Sheik Yerbouti, outro favorito de todos. E assim foi se inaugurando meu modesto acervo de Zappas. 
 
Aliás, não poderia haver coincidência melhor que essa: conhecer a música de Zappa através do Hot Rats. Ter logo de saída a oportunidade de apreciar em toda sua exuberância uma das principais obras da música moderna, uma experiência revolucionária que aproiximou o peso do rock com o experimentalismo do jazz numa receita imbatível. No ano seguinte Miles Davis, outro visionário, faria esse movimento em sentido oposto, acenando para o rock a partir do universo do jazz, com seu album duplo Bitches Brew. Mas isso é assunto pra sere tradado em um outro texto. 
 
O caráter jazzístico de Rot Hats fica evidente quando olhamos para os músicos escalados. Como principal nome podemos citar Jean-Luc Ponty que despontaria como um dos mais reconhecidos do jazz na década seguinte. E a cozinha da banda, que são o baixo e bateria, ficou na maioria das faixas a cargo de Max Bennett e John Guerin, musicos que logo adiante formariam o grupo de jazz fusion L.A. Express, com Tom Scott e Larry Carlton. Esse mesmo jazz fusion que talvez nem existisse sem as bandeiras de Zappa e Miles e que, diga-se de passagem, raramente superou esses dois, a não ser por experiências como por exemplo da Mahavishnu Orchestra, que vem da linhagem de Miles e que também é tema oportuno pra um outro texto. 
 
Falando nos músicos participantes desse disco, seria um crime inafiançável omitir a participação mais que especial do exótico e genial Captain Beefheart na faixa Willie the Pimp, uma jam de quase dez minutos inundada de criações sonoras pela voz de Beefheart e pelo violino de Don Sugarcane Harris. Beefheart, também conhecido como Don Van Vliet, era amigo de juventude de Zappa e desenvolveu uma carrreira musical extremantente criativa e original dos anos sessenta até os oitenta quando se aposentou e passou a se dedicar às artes plásticas, outra habilidade sua, até sua morte em 2010. Mas, adivinhe, esse é por excelência tema para outro texto, claro.
 
Resta dizer que os temas do disco, todos instrumentais, com a exceção de Willie de Pimp, estão entre os mais inspirados da carreira de Zappa. Peaches en Regalia é uma das músicas mais conhecidas e executadas em shows ao longo de sua carreira e The Gumbo Variations segue a tradição das jams infernais que sempre pontuam seus discos. São seis faixas que se bastam para definir um que pode ser considerado a principal obra de Frank Zappa, caso seja possível eleger apenas uma. E Hot Rats está sempre no páreo.
 
   Mas se seis faixas podem parecer pouco para fãs mais apocalípticos, no final de 2019 foi lançado The Hot Rats Sessions, um box de seis CDs contendo a íntegra do material gravado ao longo de todas as sessões de 1969 em comemoração ao jubileu de ouro do álbum. São mais de sete horas de música contendo, além das seis faixas originais, takes alternativos, demos, temas inéditos, experimentos diversos e rascunhos das músicas; enfim um oceano de prazer para zappófilos. E como um consolo para quem como eu não dá conta de adquirir esse item, digamos físico, tem disponível nas plataformas de streaming. Pois é...
   
E já que falei em streaming, um último comentário: nas plataformas o álbum original foi retirado com o lançamento do box. Péssima ideia. Para quem só quer ouvir a obra original, é preciso garimpar as faixas soltas uma a uma em meio aos seis discos com aquela falta de informação e créditos característica das plataformas de streaming. Eu ia fazer uma crítica ao estreaming agora, mas pensando bem, melhor deixar essa para um outro texto também.
 

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Plínio Machado