O Bloco do Fuá decidiu que não sairá às ruas no carnaval em fevereiro por acreditar na ciência e na eficácia das medidas de controle da pandemia: distanciamento social, uso de máscaras, vacinação de adultos e crianças, com todas as doses necessárias.

Em março de 2020, foi decretada a pandemia de Covid-19 na cidade de São Paulo. Tínhamos acabado de sair às ruas, carnavalizando, subimos ladeiras, ocupamos vias e mandamos nosso recado de que para viver bem é necessário dançar, cantar, criar, compor, inventar e reinventar espaços de encontros e aprendizagens. Espaços onde a diferença e diversidade são comemoradas e firmadas como base do conhecimento, do convívio entre as pessoas e o respeito a todos os modos de ser e de estar em nossa sociedade. O Bloco do Fuá é um bloco do Bixiga e de luta que existe há oito anos. Levamos diversão e contestação às ruas do bairro, com músicas bem humoradas, mas com crítica social e política e os mais diversos ritmos como samba, marchinhas, axé, ciranda e o  frevo. Defendemos o carnaval de rua livre, sem a interferência do Estado, gratuito, democrático, sem abadás e cordas, promovendo a ocupação dos espaços públicos enquanto exercício de cidadania. Somos contra qualquer forma de privatização desta tradição cultural. O Fuá é um bloco laico e democrático. Defendemos os direitos humanos e pregamos o respeito às minorias, às lutas contra a discriminação, por igualdade de oportunidades, empregos e salários dignos. Somos da classe trabalhadora e estamos sempre ao lado das lutas da classe, dos movimentos sociais e culturais com este viés

Ano passado, em setembro, retomamos os ensaios com todos vacinados e cumprindo protocolos de saúde e tínhamos o desejo de inundar as ruas com nossa alegria e crítica nesse novo ano, apesar de tantas tragédias pelas quais estamos passando: do surgimento da pandemia de Covid-19 ao terrível retrocesso social, político e econômico advindo com o golpe de 2016 e intensificado com a eleição do inominável atual presidente do país.

Afinal de contas, carnavalizar também é cuidado em saúde! Saúde Mental!

Mas, o momento atual novamente nos golpeou com o surgimento de uma nova cepa (omicron) e um impressionante aumento de casos de covid-19 em todo país. Conscientes da importância das medidas protetivas para controle e erradicação dessa doença que já levou tantas pessoas queridas, amigas, irmãs à morte, o Fuá decidiu por não sair às ruas no Carnaval de 2022.

Porém, cabem aqui algumas reflexões importantes:

O cancelamento do carnaval de rua é uma medida correta e necessária, mas apenas cancelar o carnaval dará conta de evitar aglomerações e cumprimento de protocolos, já que festas fechadas, shows, grandes encontros de cultos religiosos, campeonatos de futebol estão liberados e acontecendo em intensidade? E o que dizer de todos os trabalhadores e trabalhadoras moradoras das regiões periféricas da cidade que enfrentam cotidianamente trens e metrôs absurdamente lotados para a ida ao trabalho e a volta para casa? O Programa Cidades Sustentáveis, em pesquisa com 302 municípios de todo o Brasil, mostrou que 67% dos municípios não aumentaram as frotas de ônibus para diminuir o índice de passageiros e que 76% deles diminuíram a frota disponível. Dados do PNAd/Covid mostram que nas classes D e E, apenas 7,5% das pessoas puderam mudar o local de trabalho, sem precisar movimentar-se na cidade para chegar aos empregos e em Pesquisa realizada pelo Instituto Polis na cidade de São Paulo os dados demonstram que a mortalidade de Covid-19 é maior entre trabalhadores e trabalhadoras mais pobres, que, em muitos casos, são caracterizados pela informalidade e pela impossibilidade do trabalho remoto.

Não podemos e não devemos esquecer ou invisibilizar o que os dados de várias pesquisas já nos mostram: é a população pobre quem está mais sendo prejudicada pela pandemia. No ano de 2020 no Brasil surgiram 20 novos bilionários ao mesmo tempo em que o país voltou a figurar no mapa da fome tendo hoje mais de 20.000.000 (vinte milhões) de pessoas em insegurança alimentar, ou falando de modo direto e objetivo: passando fome todos os dias!

Carnaval é uma festa tradicional e popular. É momento em que o povo, em meio a sambas e marchinhas, fantasias e alegorias extravasa seus desejos e críticas, também seus conceitos e saberes. Historicamente, a repressão e o controle fazem parte do cenário, bem como intenso preconceito. O carnaval mobiliza o povo pobre e é comum a composição de enredos que fazem críticas políticas e sociais, evidenciando a grande desigualdade, discriminação e racismo existente na sociedade brasileira. No último carnaval, por exemplo, acabaram de acontecer as eleições e o povo já gritava nas ruas, espontaneamente, “Fora Bozo!”, por todos os cantos do país. Além da repressão percebemos também uma nítida intenção de elitização da festa, onde só alguns tenham direito ao baile: as casas fechadas, onde cobra-se dinheiro, e não pouco, na entrada. Hoje, além disso, a percepção do nicho de negócios que significa o carnaval está levando esta tradição a uma grande mercantilização tendo a Prefeitura como principal agenciadora da festa. Assim os blocos estão sendo obrigados a cumprir horários totalmente diferentes dos que tinham (hoje já não se pode desfilar após as 19h, por exemplo), há mudanças de trajetos, ameaças de punições. Tudo isso não a fim de contribuir para a força geradora de potência desta festa, mas sim para capitalizar e gerar lucros que passam muito longe das comunidades, dos fazedores de arte e cultura. Gerar um lucro a ser subtraído pelas empresas privadas, como marcas de cerveja. Neste sentido, os blocos carnavalescos, que por muito tempo se caracterizaram pela liberdade e autonomia expressivas e de atuação em suas comunidades, correm risco de virar meros instrumentos de geração de lucro para outros...

Há alguns anos estamos convivendo com um cadastramento proposto pela prefeitura que se propõe organizador, porém em inúmeros casos mais atrapalha do que ajuda e efetivamente não consegue colaborar com os diferentes grupos para a realização de uma festa alegre e cidadã, onde o direito à manifestação, garantido em nossa Constituição, seja realmente respeitado, chegando inclusive a cancelar cortejos. O que dizer então, de foliões, artistas, músicos, que além de apanhar, tiveram seus instrumentos arrancados e quebrados pela polícia que se dizia no cumprimento de sua função porque o bloco “não estava cadastrado”!

Acreditamos que é função da Prefeitura contribuir na organização e planejamento da cidade e, nesse sentido, atuar junto aos blocos e agremiações de escolas de samba a fim de proporcionar à sociedade momentos festivos, que geram renda a diferentes grupos de forma organizada e eficiente, porém, acreditamos que a forma como está se propondo esta organização vem, ano a ano, muito mais construindo uma lógica de controle e repressão do que de apoio e reforço do protagonismo popular.

E ainda, como falarmos da contribuição da Prefeitura na organização desta festa cultural ao mesmo tempo que vemos uma Secretaria de Cultura sendo desmontada governo a governo, gestão a gestão, com diminuição de número de trabalhadores e intensas terceirizações de serviços?

No tocante ao carnaval, esse ano nos deparamos com a contratação de uma empresa privada que será a responsável pela organização de toda a festa.

Porque a Secretaria de Cultura não continuou com seus funcionários empenhados nessa organização de um evento que fatura bilhões? O Carnaval é manifestação cultural da cidade e nesse sentido deve ser pensado enquanto tal, e não apenas como um evento de quatro, cinco dias ou um mês que começa e acaba ai. As escolas de samba, assim como os blocos carnavalescos não comerciais se empenham durante todo o ano em suas comunidades, em seus bairros, promovendo espaços de articulação de arte e cultura, fomentando música, dança, artesanatos... É toda uma engenharia cultural que se desenvolve ao longo de um ano, onde os dias de fevereiro são seu ápice, mas não seu começo ou fim.

Porque contratar um grupo privado, distanciado da formulação da política pública, que ganhará para atuar até junho de 2022? E, se não haverá saída de blocos, essa contratação continuará?

Essas são perguntas para as quais já temos caminhos de respostas, mas que queremos principalmente, pensar juntos, pois o debate para a construção de uma ação coletiva é essencial.

 Por fim, há um interessante ideograma chinês que pode nos ajudar a pensar esse momento. É o ideograma da crise, em chinês o weiji. Este é formado pela junção de dois outros: “perigo” (wei) e oportunidade (ji). A pandemia de Covid 19 nos colocou em extremo perigo, causando o fim da vida de muitos, ela porém nos dá a oportunidade de rever, definitivamente, os conceitos fundantes de tanta desigualdade e injustiça em nossa sociedade atual. É tempo também de Sankofa, adinkra que nos remete a olhar e aprender com o que aconteceu no passado para atuar no presente. Essencial que nossas mentes e corpos se esforcem para ultrapassar as análises rápidas e rasas e nos empenharmos na busca de uma outra sociedade possível. Parafraseando Rosa Luxemburgo: onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres!