Ana Paula, Jaqueline e Tatiana. Eram esses seus nomes. Pediam pão, maionese e Pepsi na porta do mercado. Dessa vez, o pedido foi feito para mim.
Ana Paula me olhou nos olhos e falou de novo: ‘pão com maionese, pra gente comer, tia.’ Algo na voz da mulher Ana me fez viajar ao meu passado de criança, recém-chegada à cidade, quando ia com minha mãe às missas de domingo na igreja de Santo Antônio, na praça do Patriarca. A cola era a droga da vez, cheirada em latas e sacos, pelos becos e ruelas do centro da cidade de São Paulo. Por crianças, como também eu era.

Me lembro do frio, da garoa, da loja de chocolates Kopenhagen logo na esquina do ponto final do ônibus que nos levava à missa. Durante o culto, meu pensamento lembrava que estava na hora de comer as balinhas de leite da loja, da cor da cola, embrulhadas em papel metalizado, da cor das latas.

As vendedoras maquiadas, cabelos presos, unhas feitas pesavam as guloseimas. Me lembro da Nhá Benta: doce de chocolate preto por fora e branco de marshmallow por dentro. Nhá, sinhás. Brancas mulheres dos engenhos de açúcar agora davam nome ao doce desejo vendido a quem podia pagar.
As mulheres e crianças daquela época gravitavam em torno das igrejas – os mais novos vendiam santinhos de papel. Imagens de mártires impressas. Olhos, como os deles, pedindo por orações, por atenção e tempo dos devotados ao sofrimento.

Era certo que se cruzássemos com algumas dessas crianças no caminho para casa minha mãe compraria os santinhos de papel; depois perguntaria às crianças se elas queriam comer conosco. Sentávamos todos em uma lanchonete nas redondezas e lá ficávamos até todos terminarem. Eu era a primogênita, de três. Chamava minha atenção o correr dos olhos das crianças pelos menus, fartos de opções e fotos de saborosos lanches. Mesmo sendo a mais velha dos três filhos de minha mãe, ainda era pequena em idade e estatura: nove anos completos, menos de um metro de altura.

Me intrigava a presença de crianças, como eu, na rua, aparentemente desacompanhadas de suas mães. Me intrigava minha mãe deixar que elas escolhessem o que queriam. Me intrigava a rapidez com que comiam, com que escolhiam, com que corriam embora, com o lanche para viagem – para comer mais tarde, como dizia minha mãe.

Volto para o presente, agora de novo dentro dos corredores do mercado: comprei o pão, a maionese e a Pepsi. Comprei também leite e bolachas. Como pensava minha mãe: “para comerem mais tarde””.


Crônica escrita na primeira semana de março de 2020.