O Coletivo Salve Saracura vem, por meio desta nota, demonstrar seu repúdio à aprovação, pelo
CONPRESP - Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo, de dois empreendimentos imobiliários dentro da área tombada da Grota do Bixiga.
Os empreendimentos estão assim localizados: na Rua Almirante Marques Leão, nº 708 a 756, sob responsabilidade da empresa Corrientes Empreendimentos Imobiliários Ltda. (processo nº 6025.2019/0026124-6); e na Rua Rocha, s/n, sob responsabilidade da empresa Seng Administradora de Bens Ltda. (processo nº 6025.2019/0024432-5). Este último foi aprovado após a interrupção da transmissão ao vivo da reunião do referido conselho, tendo sido, portanto, sem transparência.
A autorização para que tais empreendimentos sigam com o processo de licenciamento é preocupante, pois viola frontalmente o disposto na Resolução CONPRESP nº 22/2002, responsável pelo tombamento do bairro do Bixiga. Segundo a referida Resolução, devem ser considerados:
(i) a importância histórica e urbanística do bairro da Bela Vista na estruturação da cidade de São Paulo, como sendo um dos poucos bairros paulistanos que ainda guardam inalteradas as características originais do seu traçado urbano e parcelamento do solo;
(ii) a permanência da conformação geomorfológica original nas áreas da Grota, do Morro dos Ingleses e da Vila Itororó́, cuja preservação proporciona a compreensão de como se deu a estruturação urbana do bairro;
(iii) a população residente na Bela Vista, cuja permanência e ampliação é fundamental para a manutenção da identidade do bairro.
Sabe-se que a Resolução de tombamento da Bela Vista não define, com efeito de lei, limites máximos de gabarito, no entanto – desde o Inventário Geral do Patrimônio Ambiental, Cultural e Urbano da Bela Vista
(Igepac), desenvolvido entre 1983 e 1985, passando pelo tombamento em 1993 e sua reiteração em 2002, até mapas de diretrizes anexos à resolução – toda a documentação que embasa o tombamento indica um sentido de preservação da área da Grota que vai contra a verticalização. Em outras palavras, os estudos técnicos que justificaram a edição da Resolução 22/2002, embora desprovidos de força normativa, devem ser considerados como parâmetros interpretativos, sob pena de descaracterizar por completo o tombamento do bairro.
E, de acordo com o Igepac Bela Vista, “recomenda-se para esta área uma legislação que impeça os gabaritos verticais de edificações que lá venham a ser construídas”. Considerando a especificidade da região da Grota, esta área é “predominantemente residencial e ocupada horizontalmente” e definida sobretudo por suas características geomorfológicas, de modo que a verticalização “prejudica a legibilidade da topografia local” ( Item 6.3.7) .
Apreende-se daí a importância de garantir a legibilidade da paisagem, das características geográficas e morfológicas da Grota, intimamente ligadas com a ocupação dessa área da cidade em termos sociais, culturais e ambientais. São exemplos as nascentes que desaguam no riacho
Saracura Grande (atual Rua Cardeal Leme) e sua várzea registrada em mapas como Caminho do Saracura (atual Rua Almirante Marques Leão), os usos do espaço historicamente ligados a esses recursos naturais como o Quilombo que ali existiu e sua relação com o antigo Tanque do Reúno (atual Praça 14 Bis). Parte destas construções concretas e simbólicas ainda são perceptíveis, com alguma permanência do parcelamento do solo, por meio das construções em sobrados e, sobretudo, das encostas com vegetação que resistem e garantem a apreensão de que ali há uma formação geográfica específica relacionada a aspectos culturais específicos.
E, em que pese a robustez de tal fundamentação, causa ainda mais espanto os argumentos utilizados pelo CONPRESP para aprovação do empreendimento localizado na Rua Almirante Marques Leão, que, segundo o voto do conselheiro relator, seria importante para garantir a manutenção da população residente e a qualificação urbanística do bairro. Trata-se, na realidade, de argumentos falaciosos, pois o projeto arquitetônico não se presta à qualificar o bairro e muito menos a manter a população do Bixiga, cuja permanência está em constante ameaça por conta do avanço da especulação imobiliária.
Se o Plano Diretor Estratégico da cidade e a Lei de Zoneamento apontam para o adensamento e a verticalização de áreas centrais, no caso da área tombada da Bela Vista – com limites claros dados na Resolução CONPRESP nº 22 de 2002 – o mais restritivo deve prevalecer. O descrito na resolução (e ricamente explanado nos estudos que a embasam) deve ser levado em consideração por qualquer nova construção na área. Não só como dado do passado – ameaçado de apagamento sob o véu da “integração” – mas como dado real e concreto a ser respeitado e preservado.
A aprovação destes dois empreendimentos não é um fenômeno isolado: o bairro tem sido alvo preferencial do capital imobiliário especulativo, que coloca em risco – e risco de morte – o Bixiga que conhecemos, com seu patrimônio histórico, cultural e ambiental. Pelo que se observa, nem mesmo uma norma de tombamento, editada pelo próprio CONPRESP, é suficiente para limitar a voracidade da construção civil, que – ao contrário do que foi afirmado pelo conselheiro – não está preocupada com a qualificação do meio ambiente urbano, mas sim com a maximização dos lucros, em detrimento do direito à cidade.
É por isso que recebemos com preocupação a aprovação desses empreendimentos dentro da área tombada da Grota, abrindo-se um perigoso e irreversível precedente de descaracterização do tombamento do Bixiga, permitindo que outros empreendimentos sejam aprovados na região sob a justificativa de que as características originais do bairro, que motivaram o seu tombamento, já não existem mais.
Cabe ao CONPRESP, a despeito de sucessivas intervenções de uma gestão que entrega a cidade à especulação, fazer o trabalho que justifica sua existência: zelar pela preservação dos bens e áreas tombadas a partir daquilo que está definido e pactuado não só nas resoluções, mas no acúmulo de conhecimento que as criou.
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