Nós, moradores do Bixiga, bairro histórico de maioria negra e herdeiros da resistência do Quilombo da Saracura, nos sentimos como se o joelho da especulação imobiliária estivesse sobre nossos pescoços. Só que aqui o desfecho não será o intentado pelo capital. Apostamos na mobilização dos moradores, comerciantes e entidades sociais, que têm a força necessária para dar um basta nisto e trazer bastante ar para os nossos corações.


bixiga rio saracura

O lucro desenfreado e a ganância desmedida querem desfigurar o nosso bairro numa verticalização parecida com a que fizeram na rua Paim, quando derrubaram todas as casas e construíram prédios nos dois lados da rua. Agora estão fazendo o mesmo na rua parelela, Penaforte Mendes. Mas são tantos empreendimentos imobiliários que querem fazer no nosso bairro que irão o desfigurar por completo e acabarão com patrimônio arquitetônico (1089 edificações tombadas), cultural (o bairro com mais equipamentos culturais por metro quadrado de São Paulo), ambiental/natural (permeado pelos rios Bixiga, Itororó e Saracura) e social (com a nossa convivência nas ruas com cadeiras nas calçadas).

A união dos moradores do bairro, com apoio de paulistanas e paulistanos de outras regiões, já impediu judicialmente a privatização por PPP (Parceria Público-Privada) da escadaria do Bixiga, um dos marcos da cidade. Agora, precisamos dar um basta definitivo ao avanço especulativo, e estamos lutando em três frentes: a aprovação do projeto de lei do Parque do Bixiga, contra a construção de um empreendimento imobiliário na nascente do rio Saracura e para que o Teatro Ruth Escobar não seja transformado em uma igreja.

Parque do Bixiga

parque do bixiga faixaImagine como seria bom um espaço verde no centro da cidade de São Paulo, com hortas, amplos espaços de lazer e cultura.- contemplando um Teatro de Arena -, áreas para esportes e para as crianças brincarem, além da revitalização do leito do rio que deu início à história da ocupação do bairro? Parece um sonho mas, não é. Esteve muito próximo de se tornar realidade bem aqui no Bela Vista - hoje o bairro com menos áreas verdes preservadas na cidade -, quando o projeto lei do Parque do Bixiga (PL 805/2017) foi aprovado pela Câmara Municipal e posteriormente vetado pelo prefeito em exercício.
Localizado no coração da cidade, mais especificamente na rua Jaceguai, existe um terreno de 11 mil metros quadrados, circundando o Teatro Oficina, que moradores, arquitetos, urbanistas, ambientalistas, artistas e ativistas desejam transformar no Parque do Bixiga. Uma luta de mais de 40 anos.
Mas o dono do terreno, Senor Abravanel, mais conhecido pelo seu nome artístico, Sílvio Santos, tem outros planos para aquele que vem a ser o último chão de terra livre no centro. Insensível aos apelos da população, o dono do SBT atrás de muito lucro, prefere ouvir o mercado da especulação imobiliária e tem a intenção de construir três enormes prédios. Serão torres de quase 100 metros de altura, com estimativa de mais de mil apartamentos para a elite.
Imagine o impacto físico que causará nas diversas casinhas tombadas que estão num raio de cem metros, podendo vir a rachá-las ou mesmo a destruí-las. E as nossas vielas suportarão tantos carros? Sem contar que no terreno passa sobre leito aterrado do rio Bixiga, que queremos ver voltar a correr a céu aberto.
Neste início de ano, o mesmo projeto de lei será reapresentado pelo Suplicy na Câmara Municipal e começará a ser discutido pelas vereadoras e vereadores recém empossados. Esperamos que seja aprovado novamente e, agora que a população assumiu esta luta, contando com uma ampla união de diversos setores sociedade, ficará bem mais difícil o prefeito mais uma vez não sancionar o projeto do Parque do Bixiga, trazendo um sopro de alento e ar puro para os paulistanos.

Grota do Saracura

O Bixiga é recortado pelos rios Saracura, Bixiga e Itororó, formando uma bacia hidrográfica. Houve um tempo em que a solução dada aos rios foi sua canalização, chamada de urbanização. Tal atitude era uma política do estado.

Recentemente, na contramão deste pensamento, moradores e ativistas do bairro e da cidade, ecologistas e defensores dos rios de São Paulo formaram o Coletivo Saracura. O objetivo era conscientizar a população que, por onde você ande no bairro, a cada 300 metros estará cruzando um rio, e sobre a necessidade de proteger suas nascentes. Com a crise hídrica de 2014, começaram as discussões que há muita água em São Paulo, pois existem muitos rios canalizados - portanto, muita água - , o que falta é a percepção disso. Posteriormente, a ideia evoluiu e o objetivo passou a ser maior, transformar a bacia hidrográfica do Bixiga numa mini UPA (Unidade Proteção Ambiental). No entanto, tal estratégia confronta-se brutalmente com os interesses do mercado imobiliário especulativo, que vê no bairro uma fonte de oportunidades, de olho gordo nos e normes lucros.

grota do bixiga

Em janeiro deste ano, o Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) deu anuência para a construção de dois empreendimentos imobiliários bem ao lado de várias casas tombadas pelo próprio Conselho, e bem na nascente do rio Saracura. Os dois prédios citados tiveram autorização de erguimento na rua Rocha (altura do número 600) e na rua Almirante Marques Leão (próximo do número 750). Preocupados como impacto destas novas construções, o Coletivo Saracura e mais de 50 entidades do Bixiga protocolaram no dia 10 de fevereiro um recurso administrativo no Conpresp contra a aprovação das construções imobiliárias.

A identidade do bairro, com várias casas tombadas, seu traçado urbano horizontal, está sendo terrivelmente ameaçada e pode-se abrir um precedente que será irreversível e descaracterizará o Bixiga por completo, inclusive expulsando a população que atualmente habita o bairro: a chamada gentrificação.

Sabemos que o setor da construção civil deseja extrair vultuosos lucros, não se importando com as consequências e os impactos ambientais e sociais. Porém, a reação começou pela união das entidades e haverá muita luta pela preservação das nossas características urbanísticas.

Cultura à mingua

A cultura nesse país sempre foi tratada como algo descartável, como se pudéssemos viver sem ela. A pandemia mostrou o inverso: as manifestações culturais são fundamentais para nossa existência e saúde. O atual governo, com forte inclinação autoritária, desde do início mostrou a que veio. A destruição total das produções culturais que não reafirmem sua ideologia, seu viés, vem sendo imposta pela administração federal, muitas vezes com a anuência da Prefeitura e do Governo do Estado . E em sua primeira medida, no primeiro dia de janeiro de 2019, através da reforma administrativa, o Ministério da Cultura foi oficialmente extinto pela Medida Provisória 870, publicada no Diário Oficial.

Já o Estado de São Paulo (governado pelo PSDB desde 1996) reduz verba da Cultura há dez anos. Em 2010, o gasto da pasta representava 0,63% do orçamento geral. Em 2019, após uma política de contingenciamento, ficou em 0,26%, quase um terço menos do que já era escasso. Sem contar que a pasta da cultura também abrange a economia criativa.

E na capital paulista a realidade não é diferente, o que existe é um verdadeiro desmonte das políticas públicas nessa área. Por exemplo, no programa Vai e nas Casas de Cultura. Podemos dizer que o resultado é devastador para a cidade ao fim de quatro anos com Doria e Covas, ambos do PSDB. Em 2016, último ano da gestão de Haddad (PT), a cultura recebeu uma verba equivalente a 0,93% do total do orçamento. Já em 2020, final do governo Covas, a pasta recebeu 0,71%. Importante ressaltar que os movimentos da área da cultura reivindicam 3% do orçamento destinados a pasta. Durante as eleições municipais do ano passado, tanto o PSOL, quanto o PT assumiram e incorporaram em suas propostas e programas de governo, caso vencessem.

No Centro e Bixiga

Deformar o Bixiga é arrancar dele a sua essência, está nosso DNA a Cultura, e para tanto precisamos dos equipamentos culturais que estão desaparecendo como castelos de areia. Os motivos são muitos e variados.

Longe de fazer uma radiografia minuciosa dos nossos espaços de cultura, ficarei só com alguns exemplos dos grandes teatros do bairro.
O TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) foi comprado em 2008 pelo governo federal (Funarte), depois de muito tempo fechado, e quando completou 70 anos, em 2019, estava sendo restaurado. Porém, as obras pararam a partir do governo golpista de Michel Temer e assim permanecem até hoje. O prédio é tombado nas três esferas públicas e havia um projeto defendido por personalidades de São Paulo em torná-lo num Memorial das Artes Cênicas, uma bela homenagem a grandes artistas que lá se apresentaram como: Cacilda Becker, Paulo Autran, Cleide Yáconis e outros.

Na Praça da República há o Teatro Artur Azevedo, que pertence ao Governo do Estado e fica atrás da Secretaria de Educação. Segundo o próprio site do governo estadual, o Artur Azevedo está "fechado temporiariamente". O Teatro Artur Azevedo é responsabilidade do Governo do Estado, que deve devolvê-lo à população. Da mesma forma, o Governo Federal tem obrigação de restaurar o TBC.

Numa noite fria de 2008 o Teatro de Cultura Artística pegou fogo, era tanta fumaça e fogo que dava para se ver ao longe. Lembro-me com tristeza daquele dia e do meu desespero em ver do meu prédio aquele desastre. Demorou tanto tempo para reconstruí-lo e está prevista a reinauguração para novembro deste ano.

O Cine Rex, posteriormente Teatro Zaccaro, marcaram época, com muitas temporadas de "Trair, Coçar é só Começar". No final da década de 90 o teatro fechou, virou uma produtora e depois uma casa de forró. Desde então, o imóvel está lacrado para que não o ocupem.
O Teatro Imprensa é outro que está com as portas cerradas pois quem o administrava, uma das filhas de Sílvio Santos, foi apresentar programas de TV e o empreendimento não dava o lucro que queriam.

Já perdemos muitos espaços culturais. Perder mais um para entidades religiosas que têm histórico de posicionamento contra as manifestações culturais é de partir o coração. Já havia acontecido com o Teatro Bandeirantes, que abrigou por dois anos o espetáculo "Falso Brilhante", de Elis Regina e onde também foi velado o seu corpo. Lá também Chacrinha fazia seus programas ao vivo, enquanto esteve na TV Bandeirantes. Há pelo menos 15 anos aquele espaço foi adquirido pela IURD (Igreja Universal do Reino de Deus) e, no lugar de peças e shows, temos diariamente cultos. Respeitado o direito de manifestação religiosa, não pode ser que este se sobreponha ao direito à cultura de nossos povos.

O Teatro Ruth Escobar está ameaçado de seguir pelo mesmo caminho caso não haja uma grande mobilização. Será com uma enorme união das pessoas do bairro e da cidade de São Paulo, junto com a classe artística, Sindicato dos Artistas, comerciantes e entidades, que poderemos cobrar dos empresários do setor e principalmente os governos, que viabilizem uma alternativa que não transforme o teatro numa igreja ou em mais um shopping.

Cultura deveria ser prioridade do Estado, nas três esferas. No entanto, não há uma política pública que pense em reativar o setor no Centro e na Bela Vista. Poderíamos ter espaços públicos para ensaios, ocupações e residências artísticas. Lugares com estrutura onde pudéssemos nos apresentar gratuitamente.

Cultura é resistência, inclusão e formação.

Com tantos teatros que foram fechados, a luta para que o Ruth Escobar não tenha uma outra destinação que não seja cultural só pode ser uma prioridade nossa.

 

Marco Ribeiro - morador do Bixiga, radialista e jornalista, Bloco do Fuá e do Bixiga Sem Medo

Luciana Araújo - moradora do Bixiga, jornalista, militante do MNU (Movimento Negro Unificado) e Marcha das Mulheres Negras .

Fontes:

https://www.portaldobixiga.com.br/salve-saracura-mais-de-50-entidades-do-bixiga-se-posicionam-contra-a-construcao-de-edificios-na-grota-do-bexiga/

https://blocodofua.com.br/blog-do-fua/sociedade/o-bixiga-sob-ataque-nota-de-repudio

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/04/estado-de-sao-paulo-reduz-fatia-a-cultura-ha-dez-anos.shtml

https://www.brasildefato.com.br/2020/10/30/desmonte-marca-atuacao-de-doria-e-covas-no-setor-da-cultura-em-sp#:~:text=Em%202018%2C%20foram%20R%24%20478,0%2C69%25%20do%20total.