Tootsie é um filme aparentemente despretensioso, extremamente sensível, e que pode ser pensado sob dois aspectos: as reflexões sobre identidade a partir de Antônio da Costa Ciampa e comentadores, e o mandato presidencial americano de Ronald Reagan. É possível fazer o diálogo entre essas duas abordagens? Talvez não seja interessante responder esta pergunta aqui.
Em linhas gerais, este filme trata da luta de Michael Dorsey (Dustin Hoffman), um ator brilhante que não consegue arrumar/manter um emprego na área, e que se disfarça de mulher para conseguir um emprego como atriz. E além de conseguir o emprego, vira sucesso na indústria cultural e líder feminista. É interessante frisar que, no início de sua trajetória, Michael é um verdadeiro chauvinista, e depois que vivencia as violências cotidianas que as mulheres sofrem (como Dorothy), vai sofrendo transformações significativas em seu relacionamento com elas.
Uma informação importante para se pensar este filme é que Reagan (ex-ator) é eleito presidente dos E.U.A. em janeiro de 1981. Este líder político representa uma guinada conservadora na política americana, com a introdução de reformas neoliberais e uma política externa pautada pelo combate ao campo socialista de então. Este filme, como aponta a ficha técnica, foi produzido em 1982 e conta a história de um machista farsante que é considerado a namoradinha dos Estados Unidos, pousando ao lado de figuras como Andy Warhol e virando mega star da democracia deste país.
Porém, o mais comovente nesta obra é que Michael passa despercebido como Dorothy mesmo pelas pessoas mais próximas a ele. Quem enxerga um pouco mais Michael é Julie, que se considera lésbica por se apaixonar por Dorothy. Na verdade, ela enxergou Michael por baixo de todo cosmético e discurso, o único encontro entre uma série de desencontros durante todo o filme. Pode-se interpretar deste enredo que em nosso mundo a identidade como síntese (o humano) é esquecida, e só seus personagens são valorizados (a face do capital).
E para compreendermos melhor este movimento, vamos fazer uma breve recapitulação de Ciampa. Para este autor, a expressão empírica da identidade são os personagens que desenvolvemos durante a vida: o fulano filho, fulano marido, fulano pai, fulano amigo etc. O mesmo se aplica às mulheres e às pessoas do gênero não-binário. A identidade é síntese de todos os personagens que o indivíduo desempenha no tempo e no espaço, mas os papéis sociais criados coletivamente na ordem burguesa só admitem sua fragmentação em nosso cotidiano.
Portanto essa contradição nos acompanha toda a nossa vida e a de Michael também: ele está sendo Dorothy a maior parte do tempo (também Michael), e é impedido de ser Michael (também Dorothy) para as pessoas, especialmente para Julie, por quem acaba se apaixonando. Nas palavras de Ciampa, “no Capitalismo, o sujeito é o Capital”.
Enfim, neste filme você vai rir, ficar com raiva, se sensibilizar, se apaixonar... Com uma narrativa simples e sem grandes discussões, consegue dar um tapa na cara da humanidade com luvas de pelica. Boa diversão.
Título: Tootsie (original)
Ano de Produção: 1982
Direção: Sydney Pollack
Duração: 116 min
Estados Unidos da América
Roteiro: Barry Levinson, Donald McGuire, Elaine May, Larry Gelbart, Murray Schisgal, Robert Garland
Elenco: Dustin Hoffman (Michael Dorsey/Dorothy), Bill Murray (Jeff), Jessica Lange (Julie Nichols), Geena Davis (April Page), Andy Warhol (Andy Warhol)