Era dia 18 de fevereiro de 2006. A cidade em efervescência esperava ansiosa pelo badalar das 22 horas. Era o dia do show dos Rolling Stones.
Mesmo dia, um outro lugar. Um homem andava pelas ruas, sem destino e com muitas perguntas vagava não se sabe há quanto tempo.
A praia estava lotada. Muitos desciam de ônibus fretados em Botafogo. Com olhos brilhantes miravam a imagem do porto. Logo à frente o Morro da Urca, com seus bondinhos transitando de uma pedra a outra, no alto de uma visão esplendorosa e um horizonte extremamente inebriante. Correntes de felicidade perpassavam o corpo frente àquela natureza exuberante. Olhando dali, nossa... como é bela a vida!
Caminhava muito aquele homem. Em seus pensamentos lembranças da marinha, os navios e seus capitães de fragata. As viagens pelo mar. Lembranças também da terra onde nasceu: Lajes, Santa Catarina. A terra dos Ramos. Família com muita riqueza. Vários eram os irmãos, mas todos já morreram.
Em Botafogo, um grupo andava apressado, apesar de ainda ser 12hs e terem pela frente pelo menos mais 10 horas de espera. Difícil segurar a ansiedade...
Mulheres aflitas ansiavam por um banheiro: “ vamos atravessar para o lado de lá e encontrar uma lanchonete”. A parada para o lanche não aconteceu, só deu mesmo para desafogar o corpo. Andaram, passaram pelo Canecão. Atravessaram a rua antes que o farol fechasse, ainda não tinham se desligado da correria do dia a dia de onde moram, o frenesi incessante, as horas, a busca da pontualidade perpassada por engarrafamentos, semáforos e fumaça. Um pouco mais à frente o Hospital Pinel: “o trabalho aqui é bastante interessante, aí fiz um estágio”. Logo a frente um túnel e na entrada a grande placa. Rolling Stones in Rio. “Estamos perto”.
Para muitos, em outras cidades, era loucura viajar para um show que tinha a expectativa de comparecimento de 2 milhões de pessoas. “Já pensou se tiver arrastão” ? “ Onde vocês vão dormir” ? “ Imagina, da televisão eu vejo melhor, fico sentadinho no sofá e se cansar até durmo, confortavelmente...”
Encostado em uma árvore, quase conseguia se esconder. Como tinha chegado ali? Ele se perguntava. O que mais o destino poderia reservar para aquele homem só? Seria dele a culpa pela situação em que se encontrava?
Conforto, o que será mesmo que significa isso? Terá a ver com dignidade?
Dentro do túnel, gritos e canções alegres. Nossa como estava quente o dia, é preciso parar e tomar uma cerveja, uma água. É preciso se hidratar. Após atravessar o túnel, era mais difícil para aquele grande grupo ansioso e faminto não se separar. Já havia muitas pessoas na cidade maravilhosa. “Tenho que comprar uma camiseta dos Rolling Stones de presente” “Eu quero uma que só tenha a língua” “Compra na galeria, na 24 de maio, aqui deve estar bem mais caro”.
A televisão deu flashes durante quase todo o dia. A praia estava cheia. São duas da tarde e a rodovia presidente Dutra está lotada de carros e ônibus. Parece que vai se confirmar a expectativa de 2 milhões de pessoas em um show em Copacabana.
Os lugares estão lotados de gente. Os ambulantes circulam sem parar. É uma grande oportunidade de venda: óculos, bonés, bandanas, camisetas, placas de carro, lanches, pingas com mel, cervejas e refrigerantes, colares e pulseiras hippies, sorvete. Crianças, cães, idosos, jovens, roqueiros, sem definição. Todos compunham a paisagem naquele dia.
Os gastos para um show “de graça” na praia de Copacabana foram altos. Alguns milhões pagariam.
Quais reminiscências continuavam a povoar a mente do homem. Recebia seu dinheiro todo mês, mas este não lhe pertencia. Sua casa não era sua. Para seus parentes era um inútil que só atrapalhava. Saiu de casa a vagar.
Sem destino, sem utopias. Ninguém fala com ele, ou olha em seus olhos. São tantas as pessoas, como pode a solidão ser tão profunda?
Chega a noite. Começam os shows que antecedem a grande apresentação. É um furor. Muito empurra-empurra. Macas passam constantemente em direção à enfermaria. Uma menina se afogou; uma mulher desmaiou; um homem caiu em meio a multidão, terá ele bebido demais? Será uma coma alcoólica ou problemas com o coração? Ele não se movia, não tinha forças.
A galera pula, mas nem todos. Havia os vips, aqueles que ocupavam lugar bem em frente ao palco, famosos privilegiados a custa do povo. Eles poderiam ficar bem pertinho, curtir o show com comodidade tomando seus caros wisques.
I can get now, satisfaction!
Amanheceu. Uma noite agitada para muitos.
Houve os que dançaram ouvindo um rock, outros trabalharam incessantemente “cerveja é três por cinco”, outros beberam tanto que caíram estatelados na areia as 7 da noite e só acordaram as 3 da manhã: “ eles já se apresentaram?” ; crianças se enfiavam em meio a multidão e saíam sorridentes portadores de novas carteiras, celulares, cartões de créditos.
Soubemos também de um homem que chorou.
Em uma loja de conveniência o grupo do dia anterior bebia e comia enquanto esperavam a hora do ônibus partir lá em Botafogo, onde puderam estacionar para o show.
Na praça, quase ao lado do posto aquele homem. Ele devia ter por volta de 70 anos. “O que estou fazendo aqui, assim só de cueca”. “Preciso me esconder, o que faço”. E ele corria de um lado para o outro tentando ocultar-se entre as árvores.
Uma senhora, moradora do bairro, o viu. Tentou ajudar levando-o para frente da loja de conveniência. “o que estará acontecendo com esse homem” ?
Do grupo que observava risos e piadinhas de alguns: “ele deve ter curtido muito ontem, ficou muito louco e tirou a roupa...”, preocupação de outros: “nossa este senhor precisa de ajuda, ele não está bem...”
Mobilizados alguns e indiferentes outros. Um rapaz que parou no posto para colocar gasolina também se impressionou. Deu-lhe o que beber, procurou conversar.
O homem foi alimentado, já tremia menos, conseguiu articular um pouco mais o pensamento. Sorriu e também chorou. Houve pessoas que falaram com ele, e lhe deram atenção.
Não sabia dizer seu endereço, talvez o bairro, dizia que próximo há um Banco do Brasil e também uma igreja universal. Como saber?
Um policial é mobilizado, vem conversar com o grupo. Diz que aquele homem está sempre por ali, que era assim mesmo e desculpem-me os sociólogos a culpa é da família que só pensa no dinheiro dele, a maioria delas fazem isso. Não é caso de polícia , ela pega o dinheiro e manda o aposentado embora, ele não pode fazer nada, não é caso de polícia.
O homem está arqueado, sem forças. Suspeita-se de desidratação, ele precisa de um médico, um hospital para recuperar-se fisicamente e de uma assistente social que faça o contato com a família e discuta a situação...
Liga-se para a polícia, bombeiros, SAMU, neste último a informação dada é que este homem está nesta situação por escolha própria! O tempo passa, é difícil dar um encaminhamento e a impotência causa dor.
Rio de Janeiro, cidade maravilhosa, palco de um mega evento, o show do século e palco também da tristeza de um homem que ansiava por sua dignidade, por suas escolhas, sua história. Um homem que em meio ao desespero ensinou com sua simplicidade e sabedoria.
“Obrigado por terem me escutado” “nunca mais os esquecerei” sejam felizes”.
Seu nome Leal Tal, da família dos Ramos.
O ônibus partiu. O homem não conseguiu voltar para casa, continuou ainda a perambular pelas belas praças de Botafogo. Os Rolling Stones, estes voaram para a Argentina e a vida continua...
E assim foi 18 de fevereiro de 2006, o dia do show dos Rolling Stones.