Normalmente esta coluna discorreria sobre um filme, destacando seus pontos fortes ou fracos, ou comentaria a obra de um diretor que mereça atenção. Mas confesso que me sentiria envergonhado se não falasse hoje sobre a Cinemateca Brasileira. Não há sentido em discutir cinema quando sua memória corre um sério risco. Na sexta-feira, 7 de agosto, o Governo Federal promoveu uma ação grotesca, usando força policial para tomar as chaves da Cinemateca, expulsando simbolicamente daquele espaço a atual administração e deixando o seu quadro técnico desamparado. No momento em que escrevo este texto os técnicos responsáveis pelo funcionamento da Cinemateca, alguns deles funcionários antigos, foram despedidos e estão impedidos de entrar na Instituição. Não restou nenhum técnico especializado para cuidar do acervo.
Com essa tática de terra arrasada, o novo secretário da Cultura, Mario Frias, finalmente mostra a que veio. Tal atitude, mais uma entre as diversas ações irresponsáveis do time de Bolsonaro diante da Cinemateca, não pode ser acompanhada de silêncio. O amor ao cinema e à nossa memória não nos permite omissão. A Cinemateca está acima de governos e ideologias e é um problema de todos nós.
A nova crise da Cinemateca Brasileira se iniciou quando o governo Bolsonaro decidiu, no final do ano passado, não renovar o contrato com a Acerp (Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto), que administrava o espaço e era responsável pela contratação do corpo técnico. O problema é que ele não pensou nenhuma solução para substituí-la. Se negou a prorrogar o contrato emergencialmente, para ganhar tempo de propor um novo arranjo. Na prática deixou a Cinemateca sem orçamento e seus funcionários sem salários desde dezembro. A partir de então, as poucas declarações que fez sobre a Cinemateca demonstram não só despreparo e desconhecimento mas também uma total irresponsabilidade com o bem público. Ninguém sabe ao certo qual destino o governo federal reservará para a Cinemateca. Ela está no limbo. Sobram atos desastrosos e informações desencontradas. Nos últimos meses, as menções eram sempre acompanhadas de planos descabidos: a primeira ideia mirabolante foi rifa-la como prêmio de consolação para Regina Duarte,
após sua triste passagem pela Secretaria de Cultura. O governo voltou atrás porque o cargo que supostamente ela exerceria não existia. Depois, após meses de abandono, um hipotético e inconsequente plano de transferência do acervo para Brasília. Já que não pode resolver os problemas que criou, por que não inventar mais um factoide para confundir a opinião pública? Por que não desviar a atenção diante de sua total inapetência, causada por indicações que não levam em conta o conhecimento técnico? Nada diferente do que vemos na saúde repetindo-se em todos os setores. O factoide rapidamente foi desmontado, porque a transferência do acervo é ilegal, já que o acordo que transferiu a responsabilidade da Cinemateca à União deixa claro entre suas exigências que a instituição terá sede permanente na cidade de São Paulo.
Não houve por parte do atual governo uma única atitude séria diante deste patrimônio fundamental, construído ao longo de mais de um século por milhares de criadores conhecidos ou anônimos. Nenhuma atitude para amenizar o risco que os materiais correm sem cuidados adequados. A Cinemateca precisa de gente que compreenda suas necessidades, dificuldades e desafios. É uma instituição que deve ser gerida por pessoas notáveis e que tenham apreço à história de nosso cinema. Pessoas da estirpe de seus fundadores, Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado e Antonio Cândido.
Mas sejamos justos, a crise da Cinemateca não começou hoje. Os desastres mais recentes tiveram início em 2013, quando Marta Suplicy era ministra da Cultura. Alegando um suposto esquema fraudulento, ela afastou a equipe que coordenava a instituição, desmontando a estrutura de gestão que existia então. As acusações da ministra jamais foram comprovadas e seu governo pouco fez para sanar os problemas que gerou. Desde então a Cinemateca vem progressivamente perdendo quadros técnicos qualificados, fundamentais para a preservação de seu acervo. Em 2016, como reflexo deste abandono, houve um incêndio, onde muitos filmes se perderam. Como vimos com o Museu Nacional, o preço do abandono é a destruição.
Os perigos para a Cinemateca hoje são vários: há a ameaça de corte de luz e refrigeração por inadimplência, o que colocaria em risco grande parte do acervo mais antigo, constituído de materiais altamente inflamáveis. Isso poderia gerar mais um incêndio. Este é o perigo visível. Há outro invisível: a deterioração de materiais de acetato de celulose, que se desmancham silenciosamente quando não são tratados com o devido cuidado. E o problema grave de se perder os poucos funcionários que restaram, quadros qualificados, que já eram insuficientes, e que trabalharam sem
receber seus salários ao longo deste ano. Pessoas apaixonadas por seu ofício, hoje impedidas de entrar no que era até então seu local de trabalho. “É como não poder entrar na nossa casa, que a gente construiu com as próprias mãos” me confessou um antigo funcionário.
Os “donos das chaves”, os corajosos” que invadem a Cinemateca acompanhados de policiais armados, deixam para trás um rastro de destruição e desalento. Repetem com os filmes o que fizeram com o povo diante da pandemia, abandonando-os à própria sorte. Todos sabem qual o único resultado que este comportamento criminoso trará à sociedade. A catástrofe acontece sob os olhos estupefatos de pessoas que dedicaram suas vidas a preservar imagens. Vemos o sonho de Paulo Emílio, patrono da Cinemateca, ruir. Aprendemos a duras penas que muito mais fácil do que construir um país é arrasa-lo. Anos foram precisos para formar os quadros técnicos que agora são desligados da Cinemateca. Quantos filmes se perderão? Quanto de nossa memória desaparecerá diante da burocracia despreparada?
Nossa memória imagética, patrimônio coletivo, está em risco. Assistimos na Cinemateca um acervo público ser abandonado com leviandade por pessoas que pensam que governar é se apropriar da máquina do Estado e decidir aleatoriamente o destino de um bem comum sem responder à sociedade. Este acervo foi construído por pessoas que amavam o cinema e sabiam da importância que as imagens do passado teriam para o futuro. Abnegados sonhadores que lutaram por muitos anos para formar este patrimônio, o maior acervo da América-Latina e um dos maiores do mundo. Gente que converteu seu amor ao cinema em uma herança para todos os brasileiros e que insistiram por décadas para que o Estado assumisse sua responsabilidade diante deste legado. A Cinemateca nasceu das mãos dessas pessoas, não de governos. Conhecer a grandiosidade deste sonho só realça a pequenez dos que comandam hoje o Estado brasileiro.
Repito: o abandono que vive hoje a Cinemateca Brasileira pode causar danos irreversíveis aos filmes. Nossos maiores criadores e seus herdeiros depositaram ali suas obras, confiando que seus trabalhos estariam protegidos. Razões não faltam para que se faça uma grande mobilização em defesa desta memória. Esse passo começou a ser dado por funcionários, cineastas e pesquisadores de cinema, mas precisa ser estendido para todos os setores da sociedade. O problema da Cinemateca não é só de um pequeno grupo, ele afeta o nosso direito coletivo à memória. É justamente o que o governo parece pretender ao perseguir os cursos de ciências humanas, sufocar a atividade cinematográfica e artística, interrompendo os financiamentos públicos construídos a duras penas nos governos anteriores, e ao promover a desinformação e a mentira. É compreensível: nada mais cômodo para quem diz que não houve ditadura do que apagar a memória.
O sucateamento programado da Cinemateca, instituição que deveria estar acima de qualquer disputa política e ideologia é um retrato perfeito do país em que vivemos hoje. A luta pela integridade desta instituição é a luta pela imagem do Brasil, que se perde a cada novo incêndio e a cada nova insensatez de governantes. A Cinemateca não é uma questão menor. A luta por nossas imagens determinará a forma que nos veremos no futuro. E a forma como nos vemos diz muito do que somos.
*Thiago B. Mendonça é crítico de cinema revista Época, diretor e roteirista