O mundo gira, gira, gira e em séculos de giros e giros há uma questão que pouco avança: o racismo. Por incompreensível razão, que não seja ganância e poder, o ser humano decretou que “os de pele clara” são melhores que todos os outros que se diferem deles. E as razões podem ser inúmeras: da cor da pele à religião, da sexualidade ao poder econômico, e ultimamente, de forma gritante, pela posição ideológica-política. Esta última, apesar de horrenda, tem um lado altamente positivo, que foi o de nos tirar do hipócrita cenário de um mundo de harmonia, nos mostrando a cruel e gigantesca face do fascismo que nos ronda.

O fato é que apesar de estarmos no século XXI pouco mudou no que diz respeito ao racismo. A morte de George Floyd, asfixiado brutalmente por um policial BRANCO, trouxe o assunto à tona de forma mais contundente. A comunidade estadunidense foi às ruas em protesto lindo e triste gritar sobre esse distanciamento entre as formas de tratamento dispensadas ao povo preto. Do lado de cá dos trópicos, a semelhança não é mera coincidência. É mera incidência. Aqui no Brasil da “miscigenação”, inúmeros jovens negros têm perdido suas vidas sem razão aparente alguma. Apenas a crueldade de uma polícia grosseira e mal preparada, orientada, sim, a desconfiar de todos aqueles que não tem a pele branca.

O compositor mais sagaz da chamada MPB, Chico Buarque, fala disso em seu último álbum, na música “Caravanas”, em disco de título homônimo.

Em “Caravanas” está a obra-prima desse álbum. Ali, Chico desenha a história do Brasil, do começo aos dias de hoje em suas estrofes. A canção fala dos famosos arrastões que ocorrem nas praias cariocas. Arrastões, pra quem não conhece, são ações onde um grupo de pessoas, geralmente proveniente da periferia, passa levando tudo o que puder e encontrar pela frente.

“Caravanas” fala de um lindo dia, de céu azul, que tem tudo para ser um dia nobre, até que aparece a caravana do Arará, formada por gente estranha, suburbana, tipo muçulmana, acabando com o dia tranquilo de gente “ordeira e virtuosa”, que sugere à polícia que os mandem de volta para a favela, para a prisão, para a África, ou para o fim de mundo que for, mas que não estejam por ali para atrapalhar o seu dia de “real grandeza”. E a tal gente “ordeira e virtuosa” se pronuncia: - Tem que bater, tem que matar! - engrossa a gritaria.

Chico lembra: - Filha do medo, a raiva é mãe da covardia!

Ali, está o retrato da história do Brasil. Colonial, Imperialista e Republicano que nada fizeram para equilibrar as injustiças sociais cometidas contra negros, índios e as classes pobres originárias desse contrabando de escravos e da dizimação da cultura indígena que aqui habitava. Trouxeram os negros para serem escravos, roubaram as terras que pertenciam aos indígenas, dizimaram comunidades, quilombos e nada lhes deram em troca. Essa falta de política de distribuição de renda e de desrespeito aos direitos humanos gerou a classe pobre, que habita os guetos, as favelas, os morros, os quilombolas, as aldeias... Gente que sofre diariamente para ter um mínimo de dignidade para sobreviver. Gente que não tem o que comer e tem fome.

Você já passou fome na vida? Consegue perceber a falta de humor que é gerada pela ausência de alimento no seu corpo? Consegue entender que quanto mais esse período de abstinência alimentar se prolonga, mais esse mau humor se transforma em raiva, em ódio, em agressividade? Pois bem, quem será que produziu essa classe pobre? A respota clara é: o sistema. Sistema, vale completar, chamado de “capitalista”, que é liderado por essa gente “ordeira e virtuosa” que se deu ao direito de escravizar e roubar. Isso mesmo roubar o que não lhes era de direito. Então, me diga uma coisa: O que você sente quando é roubado? Outra coisa: Você não acha justo que quem já foi roubado, mereça justiça? Você não acha justo que quem vem à vida tenha os mesmos direitos, incondicionalmente?

Enfim, o arrastão dos suburbanos, dos mendigos tipo muçulmanos, nada mais é do que o produto da sociedade “ordeira e virtuosa”. Negros empilhados nos porões dos navios de tráfico de escravos ou nas celas das prisões e favelas lhe sugere algum cenário diferente? A desigualdade social foi quem gerou essa “gente” preta, índia, pobre que vai atormentar os seus dias de “real grandeza”. A sociedade brasileira, “ordeira e virtuosa”, carregada de ganância, criou o seu próprio monstro. Um monstro mal feito, mal costurado, mal alinhavado. Esse monstro, com todo direito, quer viver, quer comer, quer beber, quer respirar, coisa que nem George Floyd, nem os meninos pretos das favelas, nem a comunidade indígena que tem sucumbido ao COVID-19 e ao brutal desmatamento e invasão de suas terras feitos por esse atual governo genocida. Esse monstro tem fome e sede de justiça. A justiça não existe, não acontece e por isso, o monstro se revolta e agride. E é por isso, que você não vai ter paz, que você não vai voltar a colocar a sua cadeira na calçada para ver o pôr-do-sol, sem medo. Bacurau que nos inspire!

Chico lembra: - Filha do medo, a raiva é mãe da covardia!

Nada vai mudar enquanto não houver equilíbrio social. Será necessário que o velho e sábio sofrimento venha nos salvar? (Olha a pandemia aí, gente!)

Muito sangue ainda vai rolar para que a sociedade “ordeira e virtuosa” perceba onde está o cerne da questão e dê ao monstro o direito de respirar. Alguém tentou fazer isso no Brasil recentemente e estava fazendo, mas foi brutalmente interrompido. Chico Buarque o defendeu e foi chamado de vagabundo. Jogaram pedra na Geni sem o menor constrangimento. Mas Geni é soberana e enquanto os cães ladram, “Caravanas” passa. É a história. Chico faz, escreve e explica história. Pra quem quiser ver, claro!

Poucos tem essa grandiosidade. Quanto a quem o chamou de vagabundo... quem era mesmo? Alguém se lembra do nome?



 

Letra da composição:

As Caravanas (Chico Buarque)

É um dia de real grandeza, todo azul
Um mar turquesa à la Istambul de encher os olhos
Um sol de torrar os miolos
Quando pinta em Copacabana
A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba
A caravana do Irajá, o comboio da Penha
Não há barreira que detenha esses estranhos
Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho
A caminho do Jardim de Alá

É o bicho, é o buchicho, é a charanga
Diz que malocam seus facões e adagas
Em sungas estufadas e calções disformes
É, diz que eles têm picas enormes
E seus sacos são granadas
Lá das quebradas da Maré

Com negros torsos nus deixam em polvorosa
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné

Sol, a culpa deve ser do sol
Que bate na moleira, o sol
Que estoura as veias, o suor
Que embaça os olhos e a razão
E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar

Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes?
Não há gente tão insana
Nem caravana do Arará