"Eu nunca quis tê-la ao meu lado num fim de semana...” Será mesmo que não quis? Na canção de Tom Jobim, os olhos verdes da carioca Lygia Marina de Moraes são morenos. Um disfarce da identidade e da atração de Tom Jobim pela musa que, nos anos 1960, foi professora de ensino primário da filha mais velha do compositor.

Quando os dois foram apresentados, no bar Veloso, em Ipanema, Tom caiu na risada e disparou: “É a primeira vez que paquera vira reunião de pais e mestres!”. Para o livro reportagem "Musas e Músicas –A Mulher por trás da canção" (ed. Tinta Negra), de Rosane Queiroz, Lygia recordou seus melhores momentos com Tom Jobim:

“Conheci Tom em uma tarde de chuva. O bar Veloso estava vazio, era junho e fazia frio. Eu e uma amiga, Cecília, nos sentamos na varanda e vimos o Tom conversando com o Paulo Góes (fotógrafo). Nós duas éramos professoras no colégio Brasileiro de Almeida, na Lagoa, e depois das aulas habitualmente íamos tomar um chope.

Ao ver as duas moças sozinhas, o papo começou e os dois acabaram se sentando na nossa mesa. A mãe de Cecília, costureira, fazia roupas para Thereza, a primeira mulher do Tom. Isso facilitou a aproximação. Quando contei ao Tom que era professora de sua filha Beth, que na época tinha 11 anos, ele teve um ataque de riso. E eu babando: imagine, eu aos 22 anos, num tempo em que aquele era um dos homens mais lindos do Brasil.

Naquela mesma noite, ele tinha prometido dar uma entrevista a Clarice Lispector para a revista Manchete, e convidou a mim e a Cecília para irmos com ele até a casa dela, no Leme. Na hora, eu disse: ‘Perfeitamente, estamos aí.’. Fomos no fusquinha azul-claro do Tom. Eu usava uma saia de lã e um suéter de caxemira. Quando Clarice abriu a porta, Tom, abraçado comigo e com Cecília, disse: ‘Trouxe minhas amigas.’. Ela fez cara de mau humor. Acho que imaginou que teria Tom somente para ela.

O clima piorou e Clarice ficou mais furiosa quando pediu a Tom que fizesse um poema para ela, como Vinicius [de Moraes] teria feito em entrevista ante- rior, e ele disse: ‘Não sou poeta. Se tivesse um violão...’.

Mas aí pegou um bloco de papel-jornal e escreveu um poema para mim, que tenho guardado até hoje:

‘Teus olhos verdes são maiores que o mar/ Se um dia eu fosse tão forte quanto você/ Eu te desprezaria e viveria no espaço/ Ou talvez então eu te amasse/ Ai que saudades me dá/ Da vida que eu nunca tive’, e assinou: A.C.J. Saindo de lá, Tom me levou em casa.

Nos despedimos no carro, com um beijinho no rosto. Fiquei nervosíssima, mas parou ali. Tom era casado. Aquela carona foi nosso único encontro a sós. A música fala de tudo o que não aconteceu: o cinema, o passeio na praia... Depois disso nos encontramos muitas vezes, mas sempre em grupo.

Logo me casei com o cineasta Fernando Amaral e entrei para a turma. Vivi o auge de Ipanema. Conheci Leila Diniz, tivemos filhos pequenos na mesma época. Após quatro anos de casada e um filho, me separei. Depois me casei com o escritor Fernando Sabino. Em 1973, acho que Tom não sabia que eu estava casada com ele e ligou para o Fernando pedindo meu telefone.
Meu marido fez uma sacanagem: deu um número errado. Em seguida, ligou para o telefone que tinha dado e avisou: ‘O Tom Jobim vai ligar aí procurando uma Lygia, mas o telefone é tal’, e deu outro número errado.

Quando cheguei em casa, Fernando estava às gargalhadas. Os amigos ficaram sabendo dessa história, inclusive o Tom. Talvez daí tenha surgido a frase na música: ‘Desliguei, foi engano/ seu nome eu não sei…'

Um belo dia, estava sozinha em casa quando ouvi no rádio pela primeira vez o Chico cantando ‘Lígia’. Fui correndo comprar o disco. Na hora, me vi na letra. Ser homenageada já é maravilhoso, e ainda mais pelo Tom, com uma música linda e sofisticada. É uma glória!

Durante os 19 anos em que fui casada, Tom evitou falar a respeito. Quando eu já estava separada, Tom me encontrou por acaso na Cobal e falou: ‘Está chegando minha musa!’. Aí liberou geral.

Até hoje, em cada boteco que eu entro tocam ‘Lígia’. Faz parte do meu show. Virei imortal. Muita gente me cobra o fato de nunca ter acontecido nada entre a gente.

Mas será que não foi melhor ter ficado na fantasia? Talvez tivesse de ser essa a história: eu virar musa, entrar num bar e eternamente me lembrar do Tom, cheio de charme.”

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Foto Lygia Marina de Moraes| arquivo pessoal