No ano passado, o Carnaval de rua da cidade de São Paulo tornou-se o segundo maior do país em número de pessoas. De acordo com dados oficiais das prefeituras, a maior festa de 2018 aconteceu em Salvador: 15 milhões de foliões foram às ruas soteropolitanas pular atrás dos blocos. Na capital paulista, foram mais de 9 milhões de pessoas, contra 6 milhões no Rio de Janeiro, cidade que ocupou o terceiro lugar no ranking.

Os números referentes a São Paulo podem surpreender, principalmente pela fama de workaholic que a cidade tem, mas a verdade é que o Carnaval de rua sempre fez parte do DNA da capital. Em 1914, nasceu no bairro da Barra Funda o primeiro cordão carnavalesco paulistano: criado pelo líder negro Dionísio Barbosa, o Cordão Barra Funda – mais tarde rebatizado de Camisa Verde e Branco – incentivou a criação de outros cordões em bairros e terreiros ocupados pelos negros principalmente após o fim da escravidão, como a Baixada do Glicério e o Bixiga.
Crianças do Cordão Barra Funda em 1925
Esses movimentos culturais deram o tom da folia até os anos 60 quando, inspirada pelo sucesso do Carnaval carioca, a elite paulistana começou a criar suas próprias escolas de samba. Com os investimentos públicos concentrados no desfile e a repressão aos cordões e blocos, que eram impedidos de festejar em áreas mais abastadas da capital, houve um enfraquecendo do Carnaval espontâneo da cidade, que só foi voltar a ganhar força no final dos anos 2000.

Retomada do Carnaval de rua

A tentativa de domesticar o Carnaval de São Paulo funcionou bem, pelo menos até a virada do milênio, quando pequenos grupos civis que organizavam rodas de samba e outras manifestações carnavalescas entre quatro paredes ganharam força dentro de suas comunidades – concentradas principalmente na Zona Oeste da cidade – e voltaram a colocar o Carnaval na rua, mesmo sem saber o que iriam encontrar pela frente.
Falta de apoio estrutural e confrontos com a polícia marcaram as saídas dos primeiros blocos que reocuparam o espaço público, entre eles o Acadêmicos do Baixo Augusta. Em 2010, segundo ano de desfile da agremiação, seu presidente Alexandre Youssef – atual secretário de cultura da prefeitura de São Paulo – chegou a receber voz de prisão em meio a centenas de foliões.
Felizmente, o clima de ativismo superou o medo da repressão e, em 2012, com o Carnaval de rua de São Paulo ganhando proporções gigantescas, há muito tempo inimagináveis, diversos blocos se juntaram para criar o chamado Manifesto Carnavalista.

Manifesto Carnavalista

O objetivo dos blocos envolvidos no Manifesto Carnavalista, como o Vai Quem Quer, da Vila Madalena, e o Kolombolo Diá Piratininga, com sede no bairro de Pinheiros, era a legalização de seus trajetos sem envolvimento da Abasp (Associação das Bandas Carnavalescas de São Paulo) e da ABBC (Associação das Bandas, Blocos e Cordões Carnavalescos do Município de São Paulo), até então únicas entidades que recebiam apoio da prefeitura e cujos desfiles ocorriam principalmente no bairro da Luz.
No dia 24 de janeiro de 2013, representantes do Manifesto realizaram uma reunião com o então secretário de cultura da prefeitura de São Paulo, Juca Ferreira, que em uma decisão histórica resolveu atender às reivindicações da organização. Em nota publicada na época, a Secretaria Municipal de Cultura afirmou que reconhecia a legitimidade do Carnaval de rua "como importante forma de expressão cultural e ocupação do espaço público da cidade”.
Manifesto Carnavalista
Uma das pessoas responsáveis por ajudar a colocar os planos de redemocratização do Carnaval de rua de São Paulo em prática foi Karen Cunha, que ocupou o cargo de diretora de eventos e projetos especiais da Secretaria Municipal de Cultura até 2017. "Antes do Manifesto, não é que o Carnaval de rua de São Paulo fosse proibido, mas blocos tradicionais como o Ilú Oba de Min precisavam buscar apoio de algum parlamentar todos os anos para poderem desfilar", conta Karen. "O bloco chegou até a se licenciar como evento."
 
Atualmente, os blocos que querem participar do Carnaval de rua de São Paulo precisam se cadastrar na prefeitura, informando seus trajetos e outras especificidades. "O modelo vigente foi pensado para que o poder público pudesse ajudar na organização do Carnaval sem burocratizá-lo, porque afinal Carnaval é Carnaval", explica Karen. "Também levamos em conta a diminuição do impacto para as pessoas que não querem curtir a festa, porque diferente de outras cidades, aqui nem todo mundo gosta dessa tradição de Carnaval de rua."
 
Graças ao Manifesto Carnavalista, a prefeitura se comprometeu a oferecer apoio da Companhia de Engenharia de Trafego (CET), a reforçar a limpeza das ruas após a passagem dos foliões e, em alguns casos, disponibilizar banheiros químicos e ambulâncias. Sob o novo esquema, de 60 agremiações em 2013, a cidade passou a contar com 538 blocos cadastrados em 2019.
 
"O movimento começou um pouco na Vila Madalena e foi se expandindo principalmente pelo centro", lembra Karen. "Uma coisa muito legal que o Juca Ferreira falava é que em São Paulo a gente tem essa culpa de se divertir, mas que ele duvidava que os paulistanos não iriam atrás dos blocos. Tanto que, desde então, o Carnaval só cresceu e blocos de todo tipo surgem a cada ano."

Novos tempos

Desde que o Carnaval de rua em São Paulo foi regularizado, centenas de blocos já surgiram sob as novas diretrizes, como o Pilantragi, especializado em músicas brasileiras, e o Tarado ni Você, cuja proposta é reviver o Carnaval de marchinhas por meio de músicas de Caetano Veloso.
 
O Espetacular Bloco da Charanga do França, que em 2019 realiza seu quinto desfile, também faz parte dessa nova leva. Thiago França, idealizador do bloco que resgata a tradição das charangas – bandas geralmente compostas apenas por instrumentos de sopro –, conta que no início, do ponto de vista burocrático, foi tranquilo colocar o bloco na rua.
 
"A questão da ocupação dos espaços públicos e a revitalização do Carnaval de rua eram pautas da gestão Fernando Haddad, nesse sentido tudo correu bem", diz Thiago. "Mas tem uma série de gastos que juntos somam uma quantia considerável: desde taxas da CET, banheiro químico extra, limpeza e comida para a banda até coisas mais inusitadas, como pagar estacionamento para alguns moradores que deixam o carro na rua, a fim de minimizar problemas com os vizinhos."
 
Desde 2015, Thiago já pôde observar mudanças no Carnaval de rua de São Paulo. "Fora o tamanho, a principal mudança é a monetização excessiva, que é uma característica de quase tudo que acontece em São Paulo. Isso me incomoda porque, numa cidade como São Paulo, monetizar uma festa de rua significa impor um recorte social, restringir acesso a certas áreas", aponta. "O lado positivo é que muita gente que sempre saiu da cidade agora fica para curtir a festa. Na Santa Cecília, a Charanga tem uma adesão cada vez maior da vizinhança, vai gente mais velha, vai criança, isso é bem legal."

Originalmente publicado em https://www.redbull.com/br-pt/a_historia_esquecida_do_carnaval_de_rua_de_sao_paulo